Etiquetas

A morte na idade média merece uma atenção cuidada pois a partir de crenças e práticas relacionadas com a morte podemos compreender um conjunto de tradições de hoje, consideradas um pouco descabidas se lhes retirar-mos o plano inicial. Na idade medieval, a morte, não era vista como um evento mas como um processo a ser vivido, antes, durante e depois do momento exato do óbito.

Prolongou-se para além da idade medieval a ideia da boa e da má morte. Sendo a má morte aquela que saía dos parâmetros pré estabelecidos e que por isso o cristão não teria tempo ou possibilidade de se preparar para o além.

Os atos assim realizados pelo moribundo, depois de advertido do seu fim próximo e de se deitar frente ao céu, voltado para oriente, com as mãos cruzadas sobre o peito, têm um carácter cerimonial, ritual. Reconhecemos neles a matéria ainda oral daquilo que será o testamento medieval, imposto pela igreja como um sacramental: a profissão de fé, a confissão dos pecados, o perdão dos sobreviventes, as disposições piedosas a seu respeito, a encomendação a Deus da sua alma, a escolha da sepultura… Depois da última oração, resta apenas esperar a morte, e esta já não tem a partir de então nenhuma razão para tardar.[i]

O problema residia no facto de que para que a pessoa pudesse dar todos estes passos, que deveriam anteceder a morte, necessitava de tempo, o que nem sempre acontecia. Nestes casos essa mesma morte era tida como vil, vergonhosa, infame. O mesmo acontecia quando alguém aparecia morto em qualquer lugar, por estar só na hora da morte e também aos condenados a pena capital. É interessante pensar que quando Thomas Hobbes no século XVII apresenta o contrato social, onde a sua argumentação tem por background o medo da morte violenta e prematura, que seria de certo uma alusão a uma forma de morrer tida por má. Sendo o esperma e o sangue algo que estava relacionado com o impuro, alguém que morria ferido teria dificuldade em que a sua morte fosse aceite como boa e por isso não seria digno de uma cerimónia fúnebre como os demais.

Os cristãos da idade média viam a eternidade como uma repartição tripla: o céu, o lugar procurado e ambicionado, o fogo purificador do purgatório, que apesar de se procurar evitar, era incomparavelmente melhor que o fogo eterno do inferno. É tido por certo, que após o passamento o homem seria julgado pelas suas obras. Logo este “ajuntar tesouros no céu” estava ligado com a capacidade do homem fazer obras piedosas e ritos religiosos, preparando assim a sua hora de prestar contas. Quando a pessoa suspeitava que a sua hora estava para chegar, procurava preparar-se para a nova vida, como um investimento no futuro que estaria prestes a começar. A reconciliação com Deus seria imperativo, não faltava a busca do perdão e o dispensar de perdão a todos, inclusive os inimigos. Não faltavam rezas e profissões de fé, não faltavam boas obras e até o destinar o lugar da sua sepultura. A ideia das obras piedosas é que elas funcionam como um facto a ser arrolado no livro de Deus, que servirá de consulta no além aquando da distribuição do galardão. No ideário medieval as obras de misericórdia tinham por base a caridade, o amor fraterno e materializava-se em doações a hospitais e confrarias ou a pobres para se alimentarem ou vestirem. Estas obras de misericórdia estavam alicerçadas na sua crença da salvação eterna, funcionando mais como uma necessidade do ofertante do que daquele a quem era feita misericórdia.

O testamento era algo que preocupava os vivos deste tempo com receios da morte. O caminho para o paraíso impunha que o caminhante se despojasse dos seus bens e da sua glória pois nada poderia levar deste mundo, assim o testamento era um sinal desse despojamento. Estes bens eram testados a familiares, amigos, servos, confessores e sobretudo a entidades religiosas de todo o tipo e até poderia incluir doentes e presos.

Duas ideias colidem com duas sensações, uma de anseio, outra de receio; a primeira é o libertar deste corpo em degradação constante em direção à ressurreição e o consequente encontro com o criador; a outra é o juízo no qual todos os homens terão de comparecer afim de prestarem contas perante a divindade. A hora da morte, no caso da boa morte, era sempre em público, visto que o moribundo deveria estar na cama onde seria rodeado de muitas pessoas familiares, amigos e os outros todos que apesar de não serem nada achavam importante afluir àquele teatro. Mas ao mesmo tempo naquele quarto deparavam-se dois exércitos, de um lado o exército do diabo, do outro o exército celestial. Nesta batalha ao moribundo restava-lhe refugiar-se no seu anjo da guarda e nos seus intercessores e renunciar às seduções do diabo, caso contrário estaria perdido. Muita é a fé nas missas que virão a ser celebradas por alma dos defuntos e as orações pelos vivos para que possam escapar ao fogo eterno e chegar à eternidade no paraíso, lugar pelo qual todo o cristão anseia. Ao longo da idade média é desenvolvida pela igreja uma “máquina” de interceder pelos mortos, onde os párocos das paróquias o faziam, mas onde os sacerdotes das ordens tinham quase um trabalho contínuo de rezar pelos defuntos.

A forma trágica como a morte é encarada é bem explícita pelo luto e pela forma como os que por cá ficavam abordavam a situação. Se é certo que o teatro do luto atual é presidido[ii] por um controle total das emoções e uma privatização da dor, nos dias em análise a exteriorização dessa dor era por demais evidente, tanto nas práticas de carpideirismo, como no traje e nos inúmeros rituais a que as pessoas, sobretudo as mais próximas do defunto, não prescindiam. Era a forma de exteriorizar no teatro da vida real o medo pela morte que os vivos transportavam, sobretudo pelo desconhecimento da sua hora. Ritualismos mais ou menos convencionados pela vivência fazem parte não apenas do passamento mas também do enterro e dos tempos que lhe sucedem.

Apesar do desdém com que muitas vezes se olha para a idade média é interessante que se compare as práticas e formas de pensar deste tempo com as da atualidade para podermos perceber que muitas coisas de hoje vieram desde a idade média com suas crenças, que apesar de ditas cristãs, são tão afastadas da Bíblia dos cristãos.

 

[i]Ariés, Philippe. O homem perante a morte. 2ª edição, Mem Martins, Publicações Europa América. 2000. P. 28

[ii] Na cultura ocidental